Soropositivo, ator transforma história pessoal em musical para combater preconceito
A Aids e o HIV ainda são temas delicados ao serem abordados abertamente. Seja por conta das dúvidas a respeito da doença ou por conta do preconceito, muitas pessoas evitam falar sobre o assunto. Mas aos poucos, em diversas esferas, o tema vem ganhando repercussão e sendo discutido. No campo das artes não é diferente e quando se trata de musicais a primeira lembrança que vem à cabeça dos fãs do gênero é “Rent“, obra de Jonathan Larson, um dos pioneiros a tratar a temática no teatro. E com missão semelhante, o brasiliense Gabriel Estrëla se lançou ao desafio de produzir “Boa Sorte“, musical semibiográfico no qual o ator coloca parte de sua história e convívio com o HIV.
Gabriel se descobriu soropositivo em 2010. Ao buscar o exame no laboratório, uma moça entoava os versos de “Boa Sorte”, de Vanessa da Mata e Ben Harper na sala de espera. A canção marcou este momento difícil na vida do ator, mas a partir desses versos surgiu a ideia de levar para os palcos as dúvidas e angústias vividas não somente pelo jovem de 23 anos, mas de muitos outros brasileiros. Após a difícil decisão de compartilhar a realidade de seu diagnóstico publicamente, Gabriel se surpreendeu com as respostas “positivas” (sem nenhum trocadilho aqui) de apoio tanto de parentes como amigos.
Por hora, a produção continua reunindo currículos para compor o elenco do espetáculo, que deve estrear em outubro. Veja nessa entrevista exclusiva para o B! como será o musical e quais os desafios encarados pelo ator, diretor e produtor do projeto.
Como surgiu a ideia do espetáculo?
Escrever sempre foi terapêutico para mim. Escrevia poemas, músicas, contos… Era uma forma de organizar (ainda que de forma subjetiva) questões pessoais, afetivas… Em uma noite, eu senti vontade de organizar os anos que já havia passado vivendo com HIV. Sentei de frente para o computador e escrevi de uma vez as primeiras seis páginas da peça.
Em geral nas artes, ainda mais em musicais, poucos são os espetáculos que tratam sobre doenças e suas reverberações. Mas há exemplos conhecidos e até hoje lembrados, como “Rent” e “Next to Normal”. Na sua opinião, qual a importância de trazer esses temas à luz da discussão no palco?
O musical com frequência é utilizado para puro entretenimento – um luxo do qual eu não me sinto no direito de gozar. São tempos confusos demais para que eu, enquanto artista, me satisfaça em fechar os olhos ou desviar os olhares da plateia. Meu interesse, atualmente, é revelar. Em “Boa Sorte” faço isso – a partir da minha história, revelo a vida de muitas pessoas que estão silenciadas.
O que você preparou em termos de dramaturgia para o musical?
A peça de seis páginas foi crescendo ao longo do processo e continua se transformando até hoje. Tive de atualizar algumas passagens de acordo com a mais recente edição do Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas do Ministério da Saúde e ainda vou adaptá-lo ao elenco que encontrarmos.
Quantas canções terá a peça?
Acho que atualmente a peça tem sete canções, sendo que algumas delas são cantadas em um pout-porri. Não é um musical “a la Broadway”, cheio de números com grandes coreografias e cenários deslumbrantes. O musical aqui vem no sentido de que algumas coisas só a música consegue invocar. Dizer “seu teste deu positivo” não é a mesma coisa que dizer “É só isso / Não tem mais jeito / Acabou / Boa sorte” – e isso faz toda a diferença.
E sobre a trilha sonora, porque a escolha por canções de Vanessa da Mata e Ben Harper?
A única canção da Vanessa que temos na peça é essa. Na verdade todas as músicas são de artistas diferentes e tem a temática em comum: falam da vida, nossa efemeridade, nossa capacidade de renovação. “Boa sorte” é ponto de partida porque de fato, quando eu fui buscar meu exame no laboratório, havia uma mocinha tocando essa música no violão. Ela construiu a cena para mim, devia encontra-la e dar-lhe o crédito, na verdade.
Que tipo de espetáculo o público poderá esperar? Algo mais intimista ou uma produção mais nos moldes que estamos acostumados a ver neste mercado?
A peça foi feita com dois intuitos principais: gerar empatia e poder viajar. Nesse sentido, a encenação é o mais simples possível para poder ser carregada em uma só mala e não prevemos nem sequer sonorização para a peça – a ideia é fazer tudo acústico, mecânico, nada digital. Como artista, prefiro não fazer nada do que estamos “acostumados a ver”. A verdade é que não sei seguir nem receita de bolo, quem dirá de espetáculo!
Como é contar a sua história, que ao mesmo tempo, também é a realidade de muitas pessoas no país, caladas ou silenciadas pelo preconceito?
Antes mesmo de começar já tem sido emocionante. Muitas pessoas me procuraram, vem compartilhar suas histórias, vem pedir ajuda – era o que eu queria desde o começo. Que pudéssemos falar a respeito. Nesse sentido, o sonho se realiza desde já!
E os principais desafios para trazer esse espetáculo à tona?
Teremos atores que também são cantores e que também são a banda do espetáculo. Arrisco dizer que depois da audição, nada mais pode ser tão difícil. Temos de encontrar vozes que se articulem bem, atores que combinem em cena e uma variedade de instrumentos para podermos pensar arranjos ricos para a peça! Se conseguirmos atores/cantores/instrumentistas incríveis e versáteis, aí meu trabalho fica fácil e o crédito passa a ser todo deles!
Nesse meio tempo, qual foi o aprendizado que você gostaria de compartilhar com os nosso leitores, muito deles fãs de musica e outros atores, produtores, músicos e pessoas ligadas às artes.
Ser artista não é apenas produzir arte. De nada vale nosso trabalho se não o vivemos, Abramovic já dizia isso (não sou eu quem estou dizendo) e é importante estarmos preparados para ter coerência quando nos propomos a essa profissão. Esperei dois anos para montar o Boa Sorte profissionalmente – não porque a peça não estivesse pronta para a plateia, a resposta do público foi muito boa na faculdade. Eu esperei dois anos porque eu não estava pronto para ela.