Os altos e baixos do temperamental Ary Barroso
Mais uma biografia teatral se destaca no circuito dos espetáculos musicais e essa fica por conta de Diogo Vilela, que além de protagonizar, estreia em um projeto com texto e direção própria. Após três longos anos de muita pesquisa, estudo do comportamento e da voz, o ator enfim revive Ary Evangelista Barroso (1903-1964) nos palcos com maestria, e engana-se quem pensava que nada superaria Nelson Gonçalves em “Metralha” (1996) e Cauby Peixoto em “Cauby! Cauby!” (2006). Com direção de Amir Haddad, o musical “Ary Barroso, Do Princípio ao Fim” que estreou na última sexta-feira, 18, foca na vida e na obra de um dos maiores compositores brasileiros, autor de grandes composições como “Aquarela do Brasil”, “Sandália de Prata” e “No Rancho Fundo”.
Apresentando um Ary divertido, porém indelicado e vez ou outra mal-humorado, Diogo já chama atenção desde sua caracterização. Grisalho, usando um alargador de nariz e óculos de grau estilo “fundo de garrafa”, a história passeia pela ampla carreira do mineiro advogado, vereador, pianista, regente, cantor e compositor de grandes sucessos, inclusive marchinhas de carnaval e canções para o teatro de revista onde entre 1929 e 1960, musicou mais de 60 peças, Ary ainda encontrou tempo para se fazer conhecido como narrador de futebol ao lado de Mário Filho, o que lhe rendeu o apelido de “a voz do gol”, e apresentar um programa de calouros, “Hora do Calouro”, na Rádio Cruzeiro do Sul, RJ.
Em cena, quase todo o tempo Diogo passa deitado em uma cama, já à beira da morte, representando os últimos dias de vida de Ary, onde intercala cenas de delírio e realidade sob a atenção e intervenção de sua esposa, Ivone, interpretada especialmente por Tânia Alves. Homenageado pelo Grêmio Recreativo Escola de Samba Império Serrano, da qual foi o tema do desfile do carnaval de 1964, não poderia haver um cenário melhor… Enquanto o samba “Aquarela brasileira” é cantado na avenida, o compositor vai recordando detalhes de sua vida e do nascimento de seus grandes sucessos. Passeia por situações diversas, como por exemplo, a saia justa que teve com Elza Soares, quando ela ainda era iniciante e foi se apresentar em seu programa aos 16 anos, e uma aposta que fez com Haroldo Barbosa, no “Fla-Flu” de 1955, onde perdeu e foi obrigado a raspar o bigode que o caracterizava há 30 anos. Atores e cantores completam o elenco e complementam a história, Ana Baird como Aracy Cortes e Alda Garrido, Mariana Baltar como Carmem Miranda, Reynaldo Machado como Moreno, e Alan Rocha, Esdras De Lucia e Marcos Sacramento, como os sambistas da Império Serrano.
Considerado um homem polêmico, famoso por algumas letras claramente nacionalistas e patrióticas, criticadas inclusive por Villa-Lobos, ao contrário do que muitos pensavam ou interpretavam, Ary falava do seu Brasil como quem de fato se preocupava em salvá-lo, valorizá-lo, demonstrando um sentimentalismo que para muitos chegava a ser duvidoso e questionável, o que muito provavelmente deve ter contribuído para as suposições sobre sua afinidade ao regime nazista – depois de compor sambas de exaltação em pleno Estado Novo de Getúlio Vargas. E ainda que fosse muito claro em suas letras, omitia uma justa fraqueza… Ary tinha medo da morte! Talvez por ter enfrentado nove comas… Mas ainda assim, nunca escreveu uma canção se quer relacionada a seus receios e angústias, diante disso, Diogo compôs um samba especialmente para o espetáculo, todo escrito em versos, chamado “Quantas vezes já morri”, para cantar as cenas que se mesclam entre o real e o imaginário… E um detalhe histórico bastante curioso, é que no dia de sua morte, aniversariava Carmem Miranda, que anos depois, veio a ser a maior intérprete de suas canções, e por conta disso não pôde ficar de fora da narrativa, assim como Linda Batista, Lamartine Babo, Aracy Cortes, Alda Garrido e tantas outras pessoas que conviveram com ele e com quem em cena ajusta suas contas.
Para escrever a história, Vilela contou com a ajuda de familiares do compositor, que contribuíram com materiais especiais, e até inéditos, como filmes e gravações. A fonoaudióloga Glorinha Beuttenmüller, antiga amiga de Ary, foi fonte indispensável nos estudos de composição do personagem, facilitando para que outras facetas dele fossem descobertas e encenadas com veracidade. Para Diogo, sua “peça musicada” é uma realização, ele que sempre quis fazer algo nos palcos relacionado à música brasileira, encontrou no livro de entrevistas “Recordações de Ary Barroso”, de Mário Moraes, as respostas que precisava para colocar a ideia em pratica, ideia essa que pretende levar Brasil afora. No palco, acompanhando Diogo, Tânia e o restante do elenco, uma banda ao vivo, formada por cinco músicos, o diretor musical Josimar Carneiro (violão, guitarra), Henrique Band (saxofones e flauta), Antônio Guerra (piano e acordeom), Marcelo Müller (contrabaixo) e André Boxexa (bateria e percussão). Sob a supervisão artística do diretor Amir Haddad, a iluminação fica por conta de Jorginho Carvalho, o cenário por Beli Araújo e os figurinos por Pedro Sayad e toda essa produção cheia de detalhes cuidados de perto, pode ser vista no Teatro Carlos Gomes, Rio de Janeiro, até 31 de março.